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1. Cemitério

É apenas o começo.

 

    A brisa nessa manhã sopra mais gélida contra minha pele, enquanto caminho para o cemitério sobre a alvorada de domingo. Envolvo meus braços contra o casaco enquanto piso no gramado verde escuro entre as lápides, não preciso me preocupar muito com o caminho para chegar, pois dois meses longe de Rovena não me fariam esquecer onde minha avó está há quase cinco anos

     Caminho distraída e encontro um lindo buquê de rosas brancas sobre uma enorme lápide, observo o anjo de pedra fazer sombra sobre elas com sua espada fincada na terra. Peço licença e pego uma rosa sem saber ao certo o porquê fiz isso, já que os mortos não estão por aqui para se importar. Então prossigo andando e chego à lápide de vovó, sento-me sobre a grama de frente para seu nome: Valentina Hansen Prado (1932-2008) – Amada e inesquecível Avó e Mãe.brisa nessa manhã sopra mais gélida contra minha pele, enquanto caminho para o cemitério sobre a alvorada de domingo. Envolvo meus braços contra o casaco enquanto piso no gramado verde escuro entre as lápides, não preciso me preocupar muito com o caminho para chegar, pois dois meses longe de Rovena não me fariam esquecer onde minha avó está há quase cinco anos.

     – Oi vovó. – Digo e pouso a rosa ao lado da sua foto. – Desculpe ter ficado tanto tempo longe, mas a mamãe quis fazer uma viagem mais longa dessa vez. – Rio sem humor e de repente me lembro de como costumávamos ir, nós três, todos os verões para a praia. Na realidade sempre fomos nós três.

     Quando percebo estou com o pensamento longe, na minha infância e percebo que em todos os momentos estive com vovó por perto, quando não tinha que fazer suas viagens a negócios, mesmo aposentada ela continuava ativa. Sorrio triste quando me lembro dos pesadelos intensos que tinha todas as noites e sempre a primeira a chegar ao quarto era vovó, apesar de mamãe fazer o possível para tentar me acalmar, só conseguia quando Valentina me segurava nos braços e cantava em meu ouvido que tudo estava bem, que estava segura. Com o passar do tempo, os pesadelos começaram a ficar piores, mais intensos, não conseguia discernir o que era real do que estava em minha cabeça, mas vovó sempre dava um jeito de me puxar para a realidade, mas acima disso, me ouvia pacientemente enquanto mamãe aos poucos se afastava. Talvez por não conseguir me dar o conforto e a segurança que precisava, e que só sentia com vovó.

     Depois que Valentina faleceu de um ataque cardíaco fulminante em uma viagem, todas as coisas pioraram; os pesadelos ficaram extremamente piores e descontrolados, muitas vezes não conseguia sair deles, então começaram a vir às alucinações. Os estados de pânico, os acidentes involuntários e as idas ao Jair. Lembro que uma das primeiras coisas que me perguntou era sobre quais tipos de pesadelos tinha, mas nunca soube explicar exatamente o que eram, pois acima de cenas eram sensações, como se estivesse sendo partida ao meio diversas vezes, ou pegando fogo, até mesmo a sensação que perdia tudo de novo e de novo, todas as noites. Nunca sei exatamente o que sonho, a imagem concreta nunca fica fixa em minha mente, somente o que me causou. Segundo Jair isso é um trauma pela perda de vovó, um trauma de perder novamente tudo o que considero concreto, tudo o que é seguro.

     Olho novamente para foto de vovó e por um segundo consigo visualizá-la sorrindo para mim, daquele jeito tranquilo e em paz que só ela conseguia fazer.

     – Voltamos ontem e mamãe quer me mandar amanhã no Doutor Jair. – Prossigo um pouco engasgada, sem saber ao certo se estou presa no passado novamente, muitas vezes lá é mais agradável do que aqui.

     Observo sua foto enquanto ouço o silêncio como resposta. Sinto uma pontada no peito e as lágrimas ganham meus olhos, então respiro fundo e olho para o céu laranja.

     – Disse pra ela que não preciso ir mais, que já está tudo bem, mas ela não ouve. – Volto meu rosto para a foto. – Desde que você se foi ela não ouve mais ninguém.

     Lembro que vovó e mamãe nunca tiveram um relacionamento intitulado o ideal entre mãe e filha, muitas vezes tinham brigas sérias, sobre os quais não consigo me lembrar. Geralmente me mandavam para o quarto ou o pátio quando iniciavam e a única coisa que conseguia ouvir eram os gritos, muitas vezes achei que eram sobre mim, sobre a minha forma de criação, já que sempre iniciavam quando vovó estava falando algo que mamãe não gostava. Mas por mais que me esforce em lembrar, não consigo.

     Uma lágrima escorre por minha bochecha e levo a mão rapidamente para secá-la, como se fosse alguma espécie de crime demonstrar o que sinto.

     – Só você me entendia e conseguia fazê-la entender, porque sei que ela lhe ouvia, por mais que não demonstrasse isso. – Digo enquanto fungo e passo a mão no nariz. – As coisas só estão piorando conforme o tempo passa. Os remédios não estão mais funcionando como deveriam, não consigo dormir sem ter pesadelos ou simplesmente sair andando pela calçada e acordar no meio da rua.

     Quando meus pesadelos ficaram piores e não conseguia sair deles, muitas vezes me induziam a um estado de sonambulismo. Saia andando pelas ruas sem me preocupar com nenhum obstáculo na minha frente, muros ou parques, nem com obstáculos móveis, como carros e caminhões. Até hoje não sei como estou viva e como me encontravam, mas o que mais me intriga é o fato de que, quando acordava, não sentia nenhuma sensação sobre o que sonhei, eram as noites em que podia dormir tranquila e as noites em que mais ansiava para que acontecessem, por maior que fosse o risco físico.

     Quando comecei a frequentar o Doutor Jair, ele iniciou um tratamento com remédios pesados para que deixassem meu cérebro em um estado de torpor, assim os pesadelos não aconteciam muito menos meus sonambulismos, por um tempo foi a melhor época da minha vida, até que voltaram com força total e nem mesmo as noites de sonambulismo continuaram a me trazer paz. Sempre que acordava me sentia frustrada e com raiva, como se tivessem me acordado antes de chegar onde deveria, por mais que não soubesse exatamente onde era.

     Abraço-me e sinto saudade da época onde tudo era mais fácil, quando vovó ainda era viva e não precisava ir ao psiquiatra por a não saber lidar com a sua perda.

     – O pior são as alucinações. – Prossigo olhando para a lápide. – Eles continuam e não param nem com calmantes, não sei mais o que faço para controlá-las.

     As alucinações começaram quando vovó morreu, a primeira foi um menino de aproximadamente sete anos. Ele vestia uma roupa antiga, uma espécie de terno de linho claro, mas estava sujo de carvão. Seu cabelo loiro estava oleoso e emaranhado, mas o mais assustador de tudo isso era sua pele pálida e doentia. Ele apareceu na minha frente enquanto estava no pátio de casa, não lembro exatamente o que estava fazendo lá. Achei estranho ele ter conseguido entrar em casa, já que o nosso pátio é lateral, então me aproximei e perguntei o que ele estava fazendo ali, se estava perdido. Então ele abriu a boca, mas não saiu nenhum som foi quando percebi que havia hematomas em sua pele, quando fui chamar por Milena ele soltou um som engasgado como se tivesse alguma coisa em sua garganta. Me aproximei hesitante, sem saber ao certo o que fazer, quando percebi ele começou a agarrar o colarinho da camisa e puxar para baixo, não conseguindo respirar, foi quando vi as marcas vermelhas e fundas em sua pele, como se tivesse sido asfixiado com uma corda fina. Só me lembro de ter gritado e tapado o rosto, quando mamãe apareceu assustada ele já havia ido embora, essa foi somente à primeira de muitas que vieram de diversas formas e em vários lugares, geralmente quando menos esperava.

     Ouço um assovio por entre as lápides que acaba por me tirar do passado, então olho para os lados procurando algo que tivesse produzido o som, mas não vejo ninguém.

     – Ontem de madrugada tive outra alucinação. – Prossigo e não acreditando muito no que estou falando, pois o que vi naquela noite foi completamente diferente de qualquer outra alucinação, mas ao mesmo tempo, é algo que não poderia ter acontecido com qualquer pessoa. – Vi um garoto na beira da praia, sem camisa e somente de calças jeans. Ele olhou para o céu e começou a chover, mas o mais estranho foi ver a sua tatuagem se movendo nas costas como se fosse viva... – Paro sentindo um calafrio subir por minha espinha. – Senti que o conhecia e que era tão palpável quanto minha própria pele. – Rio e fungo. – Por isso digo que os remédios não fazem mais efeito, mas não posso falar isso para a mamãe, você sabe como ela iria reagir ou até mesmo me internar.

     Olho para o lado e vejo um casal se aproximar de uma lápide não muito longe de onde estou. A moça se ajoelha e pousa um buquê de margaridas na grama, logo depois se abraça nele e começa a chorar.

     – Mas sinto que o psiquiatra não vai me ajudar, não tanto quanto você me ajudava. – Sorrio. – Já faz cinco anos que vou ao consultório para ouvir as mesmas coisas e prosseguir do mesmo jeito. – Protesto, mas logo consigo visualizar o rosto de vovó me repreendendo. – Ok, tudo bem, nos primeiros anos não tive nenhum pesadelo e os ataques de sonambulismo pararam, mas depois voltaram piores do que eram. Você se lembra daquela vez que acordei sentada no parapeito do viaduto e só tinha dez anos, ou aquela outra vez que acordei com a cortina pegando fogo ao lado da cama? – Olho para o casal novamente e percebo que já estão de partida. – Mas de certa forma sinto que esses pesadelos querem dizer algo, mas não sei ao certo o quê e nem que vão embora tão cedo. Já as alucinações... Não sei direito o que pensar sobre elas, já que apareceram depois que você partiu, tento desvendá-las sozinha, mas não consigo. – Suspiro frustrada. – Não sei se elas apareceram justamente porque você não estava mais por perto.

     O sol transformou o verde escuro da grama em um verde mais claro, e a lápide cinza escuro de vovó voltou ao tom mais claro.

     – Queria que estivesse aqui novamente, que pudesse me ajudar e convencesse mamãe que se o Doutor Jair não me ajudou em cinco anos, não pode mais. – Sorrio triste e acaricio sua foto com o dedo. – Queria ficar mais, mas tenho que voltar para ajudar Milena a tirar a poeira de dois meses da casa. Prometo voltar mais vezes. Eu te amo vovó.

 

– Também te amo, minha querida. – Sorrio, enquanto a vejo se levantar do chão e limpar a terra da calça jeans. – Sempre estou com você e sempre estarei, mas só pare para olhar.

     Observo Luna se virar para trás e olhar para mim, mas sei que não me vê, mas tenho certeza que me sentiu aqui em todo o tempo que estava falando. Seus olhos varrem todo o contorno da lápide e sorri triste, enquanto se vira para frente e prossegue andando com abraçada em si mesma.

     – Não ignore o óbvio, minha querida. – Digo enquanto sento-me sobre minha própria lápide e tento segurar a rosa branca sem sucesso. – Não se deixe levar pelas loucuras da sua mãe, não lute contra seus poderes, não agora.

     – Você sabe que ela não vai aguentar muito tempo, não é?

     Viro-me e observo Duncan se aproximar, sua silhueta esguia por debaixo da jaqueta de couro e os óculos espelhados.

     – Sei, e é por isso que o chamei aqui.

     – Você não sabe se esse plano vai dar certo. – Diz enquanto retira os óculos escuros e observo seus olhos negros. – Ninguém tem certeza de que dê.

      Sorrio cansada sentindo a sabedoria de anos refletindo em minhas rugas.

     – Pode não dar, mas sei que dará o seu melhor. – Envolvo sua mão com a minha, mesmo sabendo que não pode me sentir. – Sei disso, pois conheci seu pai há anos e o ajudei a criar você, são muito parecidos e por serem que confio em você de olhos fechados.

      Duncan acaricia minha mão, como costumava fazer quando o visitava, então coloca os óculos escuros novamente.

     – Obrigado. – Responde enquanto sorri torto. – Mas não é com isso que me preocupo e você sabe muito bem com o quê.

    Percebo como a tensão volta sobre seus ombros, é impressionante o quando ele consegue parecer relaxado e passar confiança quando lhe é pedido, mas eu sei o quanto essa responsabilidade pesa sobre seus ombros e lhe traz tristeza aos olhos.

     – Tudo ao seu tempo, meu querido.

    – Mas ambos sabemos que esse dia chegará, e todos temos que estar preparados até lá. – Diz com a voz embargada de tensão.

      Seus lábios formam uma linha dura e sei que seus olhos estão semicerrados por debaixo da testa franzida, é assim que parece quando está preocupado e quando quer resolver algo no seu tempo. Isso me deixa mais cansada do que me sinto, pois sei como o seu gênio forte pode acabar por arruinar todo o nosso plano.

      – Paciência nunca foi o seu forte, não é mesmo? – Pergunto sarcástica para não ter que lhe dar a resposta que merece.

      Duncan ri, fazendo o rouco de sua voz ficar mais alto e por um curto tempo consigo ver o menino que na realidade ele é.

     – Digamos que esse é um dos meus pontos fortes.

     – Não, essa é a sua maior fraqueza.

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Prólogo - Despertar da Magia

Acordo assustada, suando frio e tremendo. Levanto-me e corro para a janela do quarto, o chão de madeira range debaixo de meus passos pesados...

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Blog criado e administrado por Verônica F. Hörnne

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