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8. Aviso

Nem todos os avisos são ditos em voz alta.

 

    Antes de dormir coloquei a rosa azul em um copo de vidro com água. Deixei-a sobre a escrivaninha perto da janela e encostada na parede para não correr o risco de cair. Então deito na cama lembrando que mamãe nunca havia visto uma rosa como aquela e querendo a levar para a floricultura para tentar cultivá-la, mas consegui convencê-la a não fazer isso.

     Viro-me e escondo o rosto no travesseiro, sentindo um cansaço estranho tomar conta da minha mente e corpo, e quando vejo tudo está escuro.

     Abro os olhos e percebo que estou de frente para um extenso campo, a grama extremamente verde sobre meus pés causam leves cócegas, mas logo volto para a relva, percebendo que é coberto por flores coloridas e de múltiplos formatos. Toco em uma flor silvestre na cor laranja que está logo a minha frente, suas pétalas são tão macias quanto à da rosa azul. Deslumbro a direita uma enorme árvore de tronco largo e de raízes extensas que penetram para dentro da terra e logo saem, desenhando contornos tortos no chão. Suas folhas são claras dividindo o lugar com diversas flores lilás. Algumas delas estão espalhadas em torno das raízes que dão a impressão de serem bancos naturais logo debaixo da enorme sombra formada por ela.

     Olho para o céu e percebo que dá a impressão de ser um belo pôr-do-sol com as cores laranja, rosa e roxo se mesclando conforme chegam perto do campo florido, deixando todas as cores do lugar com mais vida.

     Deixo-me ser levada pela tranquilidade e começo a andar pelo meio do campo, passando as mãos nas flores enquanto olho de relance para a enorme árvore, a única no campo e consigo ver uma pessoa sair detrás do tronco. Forço o olhar a reconhecer a pessoa então percebo que é uma mulher, de estatura baixa e cabelos longos e castanhos, um pouco cacheados, mas quando olho para seus olhos familiares entro em choque, não sabendo se corro em sua direção ou se permaneço parada. Largo demoradamente as flores que toco sentindo o peito ser tomado por uma tamanha emoção que penso que não irei conseguir aguentar toda a carga. Meu coração se espreme e percebo que escorrem lágrimas por meus olhos, enquanto observo vovó caminhar calmamente em minha direção.

     Valentina está realmente aqui? Penso e já não tenho mais certeza. Ela parece tão vívida e bem, tão palpável e real que corro ao seu encontro. Chocando-me contra seu corpo pequeno e frágil, apertando-a mais para perto e enfiando o rosto em seu pescoço. Inalo o perfume dos longos cabelos castanhos e um pouco grisalhos na raiz capilar, enquanto vovó retribuiu o abraço na mesma intensidade, passando uma das mãos constantemente nos meus cabelos.

     A sensação de ser acolhida por ela é como se estivesse encontrado a peça que faltava em um quebra cabeça, por mais que o desenho faça sentido ele só é perfeito quando se encaixa a peça que faltava. É dessa forma que me sinto com Valentina nos braços, como se ela fosse à peça que faltava para me sentir completa. Então lembro que fazia anos que não sonhava com ela, com essa sensação reconfortante de tê-la me protegendo, já havia esquecido como era essa sensação, a sensação de segurança.

     – Vovózinha... – Foi à única palavra que consegui arrancar da garganta.

    – Shhh... – Vovó se aproxima mais, me beijando o rosto. – Não acredito que finalmente estou vendo você, minha querida. – Vejo-a me afastar gentilmente e as lágrimas prosseguem escorrendo pelo rosto. – Minha querida, queria poder ficar mais tempo, mas não posso.

     Agarro-me em seus braços não querendo me separar dela novamente.

     – Não, vovó! Fique, preciso de você comigo!

     – Prometo que volto mais vezes para vê-la, mas hoje estou um pouco fraca, não poderei ficar muito tempo.

     A olho ainda agarrada em seus braços como se isso pudesse fazer com que permanecesse ali comigo para sempre.

     – O que está acontecendo? Por que está fraca?

   – Não posso explicar, tenho pouco tempo e só vim para lhe avisar para tomar cuidado, minha querida. – Seus olhos atravessam os meus tentando fixar isso no cérebro. – Tudo na sua vida irá mudar, mas se lembre do que lhe ensinei.

Antes que pudesse falar qualquer coisa o campo foi tomado por uma forte ventania que jogou areia e outros fragmentos em meu rosto. As flores ganham a coloração acinzentada, o céu escurece totalmente e a grande árvore começa a ficar mais escura, como se estivesse secando por dentro enquanto as raízes se retorcem mais conforme tudo escurece.

      – O que está acontecendo vovó?

     Vejo o pôr-do-sol sumir completamente e a relva abaixo de meus pés desnudos começarem a secar. Olho rapidamente para os lados conforme o vento piora e os fragmentos de areia começam a me machuca a pele, cortando superficialmente.

     – Olha para mim Luna! – Vovó segura meu rosto entre as mãos, forçando-me a olhá-la. – Tudo vai ficar bem, isso é somente um sonho!

     – Mas Vó, é tudo tão real! – Grito para que o vento não engula minha voz e minha pele prossegue sendo cortada pelos pedregulhos.

     – Escute-me bem. – Pede vovó. – Siga seus instintos, sempre! Está me entendendo?

     – O quê? – Mal consigo ouvir devido ao barulho. – Como assim seguir meus instintos? Como vou fazer isso?

     Vovó olha para os lados rapidamente, e se agarra em mim enquanto nós levantamos do chão. Olho para o lado e vejo um furacão nos sugando. Nisso continuamos a voar pelo ar, agarradas uma na outra e tentando manter algum contato por mínimo que fosse. Preciso sentir que minha avó permanece comigo até o último instante, por mais que não saiba o que irá acontecer depois.

     – VÓ! – Grito e sentindo aos poucos vovó escorregar pelos meus braços.

     – Somente siga-os e tudo ficará bem!

     Vejo vovó ser levada para dentro do furacão com os braços esticados em minha direção. Seu olhar é calmo como se aceitasse o fato de ter que ir.

     – VÓÓÓÓÓ! – Grito para o vento enquanto começo a cair.

     A gravidade me puxa cada vez mais rápido, o vento cessou totalmente e só consigo ver o chão conforme chego cada vez mais perto então sinto o baque surdo. Acordo e me sento rapidamente com os olhos arregalados e a respiração ofegante. Olho para os lados e percebo que estou no pátio de casa. Meu pijama completamente molhado pela grama úmida e gelado, sinto meu corpo inteiro tremer rígido.

     Levanto-me com dificuldade olhando para os lados como se estivessem me espionando. Envolvo o corpo com os braços tentando me esquentar até chegar ao banheiro. Subo as escadas e percebo que a luz do meu quarto está acesa, paro na porta e vejo vovó parada aos pés da minha cama, ela olha para a rosa azul e depois para mim, sorri terna e ouço sua voz na minha cabeça dizendo: Lembra-se do que lhe ensinei e tudo ficará bem.

 

Volto para a sala e fico passando os canais na TV sem realmente olhar para eles. A insônia só aumenta e realmente dormir se torna um ato quase impossível. Às vezes pendurar o saco de areia no teto e ficar descontando minhas frustrações nele ajuda, outras vezes só me deixa com mais raiva. Hoje sei que pegá-lo no roupeiro não irá me ajudar em nada.

     Estico as pernas sobre a mesinha de centro e coloco a garrafa de cerveja ao lado. Nunca tinha encontrado um sofá tão macio, talvez acabe dormindo nele perto do amanhecer, somente o suficiente para não parecer tão cansado. Ultimamente o sono só aparece de dia enquanto de noite passo a maior parte do tempo acordado, acho que é pelo fato do estresse, ou por simplesmente ter que ficar parado enquanto Luna está em transição.

      Bufo e jogo a almofada longe a vendo quicar várias vezes na tábua escura do chão para depois parar. Sei que daqui algumas horas Luna irá começar a segunda fase de transição e essa não é uma das melhores. A fase da qual não saberá o que é real, muito menos como lidar com isso. Tudo por culpa de Milena.

     – Pare de pensar essas coisas. – Ouço Valentina atrás no sofá, me viro e vejo-a exausta com gostas de suor na testa. – Você sabe que as coisas não são assim.

     – Se você tivesse avisado que estava aqui não teria pensado nisso. – Rebato de mal humor. – Como foi lá?

     Valentina dá a volta no sofá e senta ao meu lado.

     – Acho que consegui fazê-la acreditar em mim.

     – Como?

   – Disse para se lembrar das coisas que a ensinei e deixei que me visse por alguns instantes. – Diz e olha para mim rapidamente. – Sei que não devia ter feito isso.

     – Claro que não. – Concordo. – Está explicado por que está tão exausta. Devia ir descansar e não gastar mais energia para aparecer para mim.

     – Não me diga o que fazer garoto. – Rebate. – Sei que gastei mais energia para Luna me ver, mas com você é diferente, sabe disso. Consigo ficar mais tempo para conversarmos.

     Reviro os olhos.

     – Qual a lição que quer me passar agora?

     – A lição de bons modos em primeiro lugar. – Valentina me olha de canto de olho, e me sinto levemente culpado. – Sei que está no seu limite tanto quanto eu, mas ser gentil não custa nada.

      – Desculpe. – Respondo e suspiro cansado. – Só que isto tudo está sendo demais para mim, ainda mais depois da notícia que recebi de você.

     – Eu sei. – Valentina faz uma leve pausa e não me importei de não quebrar o silêncio. – Mas logo as coisas ficarão mais movimentadas pra você esquentar a cabeça com soluções.

     – Não estou dizendo que quero movimentação. – Rebato e pego a cerveja. – Só queria poder fazer algo e não esperar as coisas caírem dos céus.

     – Sei que está sendo difícil não poder contar tudo para Luna, mas ela não foi criada nesse meio e estamos fazendo escondido de Milena. – Ela me olha preocupada. – Ela precisa sentir as mudanças pra depois acreditar em nós.

     Tomo um longo gole deixando o gelo de espalhar pelo meu estômago. Arrepio-me rapidamente, mas a sensação do álcool dentro de mim faz com que sinta levemente melhor e isso afeta até meu humor.

     – Eu sei.

     – Você deveria parar de beber.

     – Se parar de beber, fique responsável pela minha insanidade.

     – Fico responsável por você se tornar insuportável. – Valentina rebate. – Que seu pai não lhe veja agora.

     – Na realidade foi ele quem me ensinou isso. – Digo enquanto me viro para olhá-la melhor. – Só que ele tinha uma tendência a uísque e Bourbon.

     Valentina bufa e se levanta irritada.

     – Hoje não dá para conversar com você. – Rebate e logo depois se vira. – Espero que saiba exatamente o que fazer amanhã, pois se estragar tudo quem irá arcar com as consequências é a Luna.

     – Valentina espera! – Falo alto, fazendo-a virar mal-humorada. – Luna disse que Milena irá passar o aniversário na casa da praia esse ano. Acho que ela está afastando-a de tudo para a transição final.

     Valentina desmancha a feição carrancuda e fica extremamente séria, enquanto fita as janelas atrás de mim.

     – Pelo menos ela está fazendo algo. – Finalmente disse e volta a me olhar. – Você já sabe o que fazer a respeito.

     Com isso observo-a andar até a cozinha e desaparecer. Tomo o resto da cerveja em um longo gole e a deixo de lado na mesa de centro. Então jogo a cabeça para trás deixando-a pousar no sofá. Encaro o teto, mas sem realmente vê-lo, tudo o que consigo pensar é em como minha vida era fácil até Valentina aparecer pela primeira vez, dizendo que precisava de um grande favor meu e agora tenho que carregar o peso do mundo nas costas.

     Como se isso fosse um favor, penso, na realidade é um dever.

     Olho para o relógio vendo que irá amanhecer daqui duas horas. Bom momento para dormir, começo a me dirigir para o quarto e me jogo na cama com a roupa que estou, mas não consigo adormecer rapidamente quando tudo o que penso é em Luna e do quanto nossos destinos estão ligados desde que éramos crianças. Mal sabíamos naquela época que ficaríamos juntos para sempre.

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Prólogo - Despertar da Magia

Acordo assustada, suando frio e tremendo. Levanto-me e corro para a janela do quarto, o chão de madeira range debaixo de meus passos pesados...

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Blog criado e administrado por Verônica F. Hörnne

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