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14. Hospital

Se você julgou estar seguro, julgou errado.

 

    Abro os olhos e vejo de relance pessoas vestidas de branco e uma sirene de ambulância ecoando ao fundo, mas isso tudo some quando sou engolida pela escuridão mais uma vez. Quando acordo novamente estou no hospital e vejo uma luz fraca entrar pela janela, logo percebo que estou recebendo uma transfusão de sangue e por algum motivo sei que é de Duncan, talvez a conversa que eu ouvi durante o sono realmente tenha acontecido ou talvez tenha sido um sonho?

     Lembro que abri os olhos e o vi com o cenho franzido ao lado da cama, quando viu meus olhos observando o seus em meio ao torpor, pegou em minha mão. Perguntei onde estava e havia dito que fui transferida para um hospital em Rovena quando estava mais estabilizada. Estava recebendo seu sangue em minhas veias, apesar de não ter entendido muito bem, lembro que franzi o cenho com a dor no corpo e com isso esclareceu que era algo que o guardião tem em comum com o seu bruxo para casos urgentes como esse. É engraçado como me lembro disso apesar das lembranças da noite passada parecerem mais flashes do que uma realidade, o que me deixa confusa.

      Lembro que na noite passada, quando cheguei aqui, uma enfermeira loira com um rabo de cavalo suturou minha coxa e levei cento e quarenta pontos antes dela enfaixar com gaze e pedisse para que evitasse me mexer. Lembro que havia dito que tive a sorte de ter um doador ao lado. Ela também cuidou do meu ferimento no braço achando estranho ter tido tantos machucados, sabia que ela não havia acredito na história que Duncan contou sobre mamãe ter tropeçado no degrau da casa e ter tentado se segurar em mim.

     Isso faz com que me pergunte como está mamãe. Lembro que ficou em outro quarto para observação, já que havia batido a cabeça no chão com as repetidas quedas. Mas uma coisa é certa, se ela não está bem já saberia, tanto que dizem que notícia ruim chega extremamente rápido.

    Olho para o lado tendo dificuldade de me mexer, como se um caminhão tivesse me atropelado. Só de pensar nisso me lembro de que quase morri há dois dias, mas estou viva agora por aquele que dorme completamente torto no sofá ao lado. Duncan está deitado de lado, com metade das pernas para fora, com a cabeça para fora do braço do sofá e de boca aberta, consigo ouvir seus ressonos de onde estou e não pude deixar de sorrir de leve por mais que esteja cansada.

     Tenho vontade de acordá-lo, mas me limito a ficar olhando seu sono pesado e a exaustão de quem provavelmente passou a noite acordado cuidando de mim. Mas por mais desastroso que a terceira fase pudesse ter sido ontem, consigo sentir meu corpo diferente, como se tivesse mais força do que jamais tive e mais autoconfiança. De certa forma tudo pelo qual passei valeu apena por me sentir assim hoje, mas a exaustão ainda me toma, talvez seja pela perda de sangue.

    Ouço a porta do quarto bater levemente e vejo a enfermeira entrando com um prato de comida nas mãos. Ela é pequena, está com o cabelo loiro e comprido amarrado em um rabo de cavalo no alto da cabeça. Veste o jaleco habitual e calças brancas, uma maquiagem leve no rosto que acabou por destacar ainda mais seus olhos azuis, as maçãs do rosto proeminentes e os lábios finos. Então desvio meus olhos dela rapidamente para Duncan que prossegue dormindo, como se não tivesse ouvido nada e volto em sua direção quando a ouço falar.

     – Bom dia. – Respondo e tento me sentar na cama, mas a dor na coxa faz com que solte um leve gemido e fique parada por um momento.

     – Deixe-me ajudar.

     Ela ergue os travesseiros e aperta um botão ao lado da cama, fazendo com que erguesse para que pudesse ficar sentada.

     – Obrigada. – Agradeço enquanto ela leva a bandeja até uma espécie de mini mesa e colocando-a sobre meu colo.

     – Como está se sentindo? – Ela pergunta enquanto olho a bolsa de sangue ao lado da cama desprendendo-a e a substituindo por soro.

     – Fraca e com dor. – Respondo sem hesitar enquanto sinto o líquido entrando por minhas veias causando uma leve dormência no braço.

    Ela volta-se para mim e começa a fazer os exames habituais antes de gesticular para que comesse, quando havia terminado.

     – Não se preocupe. – Ela sorri. – Coma agora que logo um médico irá ver como você está. Provavelmente ele lhe dará um sedativo para dor, como lhe deu ontem.

     Concordo com a cabeça enquanto engulo a comida sem gosto.

     – Obrigada.

     Ela sorri novamente, mas logo olha para Duncan que começa a despertar.

     – Vou deixá-los a sós. – Diz enquanto começa a se afastar e logo a vejo sumir pela porta onde havia entrado.

     Empurro a comida para longe enquanto franjo o cenho com nojo. Então me viro para Duncan que esfrega os olhos com sono antes de olhar para mim e sorrir.

     – Bom dia. – Diz sonolento enquanto se levanta e me dá um beijo na testa.

     – Bom dia.

    – Como está se sentindo? – Pergunta e logo se senta na cama ao meu lado, o vejo olhar para a comida e levar uma colher a boca, logo depois faz um careta e engole. – Com essa comida aposto que não.

     Rio enquanto ele pega em minha mão.

    – Estou melhorando, só estou cansada demais. – Respondo e penso comigo que devo estar pálida e descabelada, mas é engraçado como isso pouco importa agora.

     – Você está gastando energia demais para se curar, é por isso. – Responde e sorri rapidamente. – Amanhã estará bem melhor, talvez daqui uns dois ou três dias já esteja completamente curada e os machucados cicatrizados.

     Suspiro de alívio sabendo que estarei longe daqui rapidamente, mas logo abro os olhos um pouco mais que o normal e transmito por pensamentos a minha dúvida.

    – Eu sei, já pensei nisso também.

    – Como iremos fazer? – Pergunto assustada e pensando em como os médicos veriam a minha cicatrização rápida.

    – Teremos que fugir. – Duncan rebate e ri levemente. – Terei de tirá-la daqui de alguma forma antes que eles vejam que já se curou. Não há outro modo. – Ele faz uma pequena pausa. – Deveria tê-la levado para o meu apartamento, poderia cuidar de você lá, mas sua mãe não é mais uma bruxa, teria de levá-la para o hospital... Acabou que a trouxe também.

     Faço um aceno de cabeça concordando.

     – Por que mamãe perdeu os poderes? Por que ela escondeu quem sou esse tempo todo? – Pergunto e vejo Duncan olhar para o lado não querendo responder. – Sei que você sabe, por que não me diz?

     – Por que o proibi de dizer. – Ouço alguém dizer e me viro para o lado no exato momento em que vejo vovó parada perto da porta.

    Pisco algumas vezes não entendendo como ela está ali, então a vejo sorrir para mim, do mesmo jeito que sorriu quando havia a visto parada em meu quarto, como se tudo estivesse bem e ela nunca houvesse partido há tantos anos.

     – Vó? – Pergunto engasgada enquanto as lágrimas caem por meus olhos.

     Ela sorri e anda até mim antes de se sentar e me abraçar, mas não consigo senti-la e isso só faz com que chore mais ainda enquanto estou em seus braços. Deixo-me ser abrigada por ela enquanto as lágrimas e os soluços tomam conta, falando por mim a tamanha emoção que sinto.

     – Por que não consigo lhe sentir? – Pergunto enquanto fungo rapidamente, mas sem tirar meus braços da sua volta, como se ela pudesse sumir a qualquer momento.

     – Isso é um pouco complicado de entender. – Responde enquanto se afasta rapidamente e sorri para mim. – Podemos nos ver algumas vezes agora.

     – Como?

     – Tudo é energia, por isso consigo aparecer para você, minha querida. Isso é o suficiente para que entenda agora.  – Rebate e sorri novamente. – Ainda não acredito que consegue me ver.

    Nós nos abraçamos novamente, então sinto o colchão do lado esquerdo subir e sei que Duncan se levantou, com isso eu e vovó olhamos para ele que se limita a sorrir para nós.

     – Vocês tem muito que conversar. – Diz e se inclina para me dar um beijo nos lábios antes de começar a se afastar. – Enquanto isso vou buscar uma comida decente para nós.

     Faço um aceno de cabeça e o vejo desaparecer pela porta, então me volto para vovó que está nos olhando atenta, mas logo desmancha a feição e sorri novamente.

     – Fico feliz que Duncan conseguiu lhe auxiliar nessa transição.

     – Por que você não me auxiliou vovó?

     – Por que você não podia me ver e se me visse gastaria energia demais para isso. – Responde e pega em minhas mãos. – Você irá entender como o meu mundo funciona com o passar do tempo, não tenha pressa.

     – Só não consigo entender algumas coisas. – Digo enquanto balanço levemente a cabeça com o cenho franzido. – Há muito nessa história que não se encaixa.

     Vovó suspira levemente, mas não mostrando impaciência e sim o contrário, como se quisesse despejar tudo em cima de mim em uma única vez.

     – Está falando sobre sua mãe, não é? – Pergunta e confirmo com um aceno de cabeça. – Não deveria falar com você sobre isso, e sim Milena.

    – Eu sei que ela não irá me falar, porque se nega até o final a aceitar que sei a verdade. – Rebato, mas logo vovó me interrompe.

     – Mas você não sabe nem a metade, minha querida. Há muito mais na nossa história do que imagina e já está na hora de saber a verdade, mas só metade dela, por que ainda é cedo para saber tudo. – Diz e faço um aceno de cabeça concordando. – Nossa família é uma das mais antigas que existe e desde sempre a nossa tarefa é a mesma, e é passada de geração para geração. Só que sua mãe nunca foi uma das melhores alunas de bruxaria, pois ela se negava, desde muito jovem, a aceitar o que era. Então quando Milena descobriu que estava grávida e viu que você iria passar pelo mesmo que ela passou, digamos que alguém a convenceu de que o melhor para você seria nunca descobrir que era uma bruxa. Assim vocês poderiam ter uma vida normal.

     – Quem a convenceu vovó?

     – Isso não importa agora. – Ela responde rapidamente mostrando que não irá adiantar continuar tentando. – Só que sua mãe nunca pensou que, quando você completasse dezoito anos, não haveria o que fazer para escondê-la, pois teria tanto poder que não iria passar despercebido de espíritos, demônios e outros bruxos. E pensar que ela sempre disse que saberia o que fazer quando esse dia chegasse.

     – Então foi por isso que a senhora sempre me mostrava coisas escondidas dela.

     – Isso. – Vovó concorda e sorri. – Que bom que se lembrou minha querida, pois seria um grande problema para nós se você esquecesse de tudo para sempre.

     Olho rapidamente para a porta esperando que Duncan entrasse, mas logo me volto para vovó que me olha atenta.

     – Não lembro exatamente o que a senhora me ensinava. – Afirmo. – Lembro somente de um livro antigo de coro com imagens ilustradas que foram pintadas a mão. Onde ele está vovó?

     – Sua mãe o encontrou quando parti. – Responde e vejo seu sorriso se perder. – Não sei aonde ela o escondeu, mas tenho certeza que está na casa em algum lugar.

     Franzo o cenho.

     – Como pode ter tanta certeza? Ela pode ter destruído.

     – Ela não faria isso. – Rebate e sorri cansada. – Esse diário é importante demais, têm as anotações de todas as gerações da nossa família, poções, feitiços de milhares de anos atrás e até feitiços aperfeiçoados com o passar dos anos. É algo valioso demais para uma bruxa destruir por mais que ela não seja mais uma.

     Fico pensando por um momento, absorvendo o que ela havia falado.

     – Como mamãe perdeu os poderes?

     Vejo vovó olhar rapidamente para nossas mãos, não querendo responder, mas logo ergue a cabeça decidida como se já estivesse escondendo coisas demais e estivesse cansada de fazer isso, ainda mais para mim.

     – Para escondê-la sua mãe precisou sacrificar os próprios poderes e seu animal protetor para protegê-la de qualquer energia externa. Isso custou muito a ela, apesar de nunca ter gostado de ser uma bruxa.

     Fico olhando para nossas mãos e pensando de como o amor de mamãe foi tão grande a esse ponto de sacrificar o próprio dom – se assim pode-se dizer – para me proteger, mas do que exatamente? Não pode ser simplesmente por demônios ou espíritos, mas sei que vovó não irá responder isso, não agora.

     – Você disse que ela teve de sacrificar seu protetor... Está querendo dizer que ela matou seu guardião?

     Vovó sorri rapidamente.

     – Não. Vou lhe explicar melhor: Quando um bruxo completa dezoito anos ele está no auge de seu poder, então encontra seu guardião para ajudá-lo o resto da vida, mas também, depois de um tempo, quando esse bruxo se sente pronto realmente, ele ganha um animal protetor, alguns mais cedo que os outros. – Ela faz uma pequena pausa. – Por exemplo: todos os bruxos guardiões ganham seu dragão cedo mostrando o que são, claro que, cada dragão é diferente do outro, alguns mais poderosos para mostrar que o bruxo que terão de proteger é poderoso ou não. – Faço um aceno de cabeça mostrando que estou entendendo. – Quando o bruxo ganha seu animal protetor ele também adquire poderes extras, por exemplo, sua mãe ganhou seu protetor alguns anos antes de engravidar de você, era um belo cisne branco que lhe dava o dom de prever o futuro, intuição aguçada e uma grande conectividade com a natureza.

     – E mesmo assim ela fez o que fez.

     – Sim, por que ela achava que era o certo. – Vovó rebate e acaricia minhas mãos. – Você tem que tentar entendê-la, isso tudo foi muito difícil para ela.

     – E mais para mim. – Rebato e abaixo o rosto rapidamente. – Poderia saber o que sou desde pequena e não, ela simplesmente me mandou para um psicólogo para fingir que era louca. Como uma mãe pode fazer isso?

     Valentina balança a cabeça levemente.

     – Ela julgou ser o certo, achou que fazendo isso daria uma justificativa para o que você via quando era pequena, quando na realidade eram só espíritos e previsões.

     – Previsões?

    – Sim, seus sonhos eram previsões do futuro, qualquer sonho que tiver agora, realmente irá se concretizar. Então tome cuidado com o que sonha, pois você poderá impedir que aconteça, ou somente será um sonho de algum lugar que terá de ir futuramente. – Responde e sorri novamente. – Quando entender sua tarefa você irá entender sobre os lugares que terá de ir.

     – Por que não posso saber agora? – Pergunto frustrada.

    – Por que terei de ir agora. – Valentina responde e vê que as lágrimas voltam aos meus olhos, então me abraça. – Não se preocupe minha querida voltarei em breve, só que gastei muita energia ficando esse tempo com você, preciso restaurá-la.

     Ela se afasta e limpa as lágrimas que estavam caindo pelo meu rosto.

     – Promete que não me deixará de novo?

     – Eu nunca a deixei. – Vovó responde e sorri para mim enquanto a vejo desaparecer diante de meus olhos, e logo em seguida a forma esguia de Duncan entra no quarto com uma sacola nas mãos.

     – Pelo jeito cheguei a tempo. – Diz e sorri antes de colocar a sacola ao lado da mesinha. – Não precisa ficar assim Luna, ela voltará, ela sempre volta. – Ele seca o restante das lágrimas que sobraram em minha bochecha. – Você não irá se livrar dela tão cedo.

     Sorrio sem jeito enquanto fungo.

     – Duncan, tenho uma pergunta. – Digo sem conseguir me refrear, pois essa questão já está há algum tempo na cabeça.

     – Faça. – Diz enquanto tira da sacola um sanduíche de peito de peru com alface e tomate, e o larga em meu colo.

     – Quando ganhou seu animal protetor?

     O vejo levantar os olhos surpreso antes de se voltar para a sacola e tirar o seu sanduíche de dentro, mas ele enrola mais um pouco antes de responder.

     – Quando completei dezoito anos. E posso dizer que foi horrível, porque estava em transformação e ainda ganhando um animal protetor. É muita carga para suportar.

     Faço um aceno de cabeça concordando enquanto mordo o sanduiche.

     – E o que o seu dragão faz? – Pergunto de boca cheia.

     – Meu dragão não, o nome dele é Gondra. Você irá entender quando tiver o seu, eles são muito sensíveis e tem inteligência, se chamá-lo de dragão estará comprando uma briga. – Responde e sorri brincalhão antes de morder o seu sanduiche. – Mas, Gondra tem grande poder físico, consegue controlar o tempo, tanto chuvas e tempestades como o tempo em si, além de ser um pouco reservado também. – Ele leva os olhos aos meus e franze o cenho rapidamente. – Mas por que todo esse interesse sobre ele agora?

     – Só curiosidade. – Respondo. – Mas posso fazer outra pergunta? – Ele me alcança um copo de café com leite enquanto assente. – Quão poderoso Gondra é?

     – Muito. – Responde distraído. – Nunca encontrei outro guardião que tenha um protetor como o meu. Já vi dragões da água, da terra, dor ar, mas nunca nenhum com o poder do tempo como Gondra.

     Sinto um arrepio tomar meu corpo, como se soubesse exatamente o poder que Gondra tem. Começo a me perguntar qual será meu animal protetor e quando ele irá aparecer, e com isso Duncan me olha como se tivesse ouvido meus pensamentos.

     – Você deve estar se perguntando qual será o seu, certo? – Pergunta e o vejo largar o sanduiche de lado enquanto mordo novamente o meu. – Sabia que Valentina iria lhe contar alguma coisa hoje. – Agora ele está falando consigo mesmo, mas logo se volta para mim. – Não se espelhe no meu para ter uma noção de qual será o seu.

     Balanço a cabeça e largando o sanduiche pela metade no colo.

     – Vovó me disse que conforme o protetor do seu guardião for forte, é que teremos uma noção de qual será o do outro. Você acabou de dizer que nunca encontrou nenhum outro dragão como Gondra.

     Ele pega em minhas mãos e firma seu olhar no meu.

     – Não pense nisso agora, você não sabe quando receberá o seu. Tem que se preocupar agora em ficar boa logo para podermos começar o seu treinamento.

      – Meu treinamento?

     – Sim, você tem que aprender a usar seus novos poderes antes de recebê-lo, antes de se sentir preparada pra lidar com os poderes que ele irá lhe trazer. – Diz e sorri levemente, mas não chegou aos seus olhos. – Temos muito trabalho pela frente.

     Sorrio levemente, mas prossigo com a expectativa de como será o meu protetor e de quando irei conhecê-lo, mas logo meus pensamentos são sugados para longe quando vejo o médico entrando pela porta.

     – Bom dia Luna, como está se sentindo hoje? – Pergunta quando se aproxima de minha cama e Duncan lhe dá espaço para me examinar.

     – Estou melhor. – Afirmo vendo-o olhar para minha bolsa de soro com atenção.

     O médico é alto e de cabelo grisalho, usa o habitual jaleco branco e deve ter aproximadamente uns quarenta e cinco anos, mas em ótima forma. Possuí os olhos calmos e castanhos que quando sorri aparecem pequenas rugas nas laterais, mas isso só lhe dá mais charme e nos deixa encantados com a forma calorosa que nos trata.

     – Isso é um ótimo sinal. – Ele diz entusiasmado e sorri enquanto olha o sanduiche pela metade sobre meu colo. – Bom, já vi que não gostou da comida daqui.

     Sorrio sem jeito e não respondo ainda mais quando sinto minhas bochechas quentes por ter sido pega no flagra.

     – A culpa é minha. – Duncan responde atrás dele e este se vira para olhá-lo.

     – Tudo bem. – Ele rebate sorrindo. – O importante é mantê-la alimentada para se recuperar mais rápido. – Ele se volta para mim. – Talvez tenha se esquecido do meu nome, mas sou o doutor Márcio e irei cuidar de você até sua alta.

     – Prazer. – Aperto sua mão que está estendida para mim. – Luna.

     Ele sorri e olha para minha perna.

     – Vamos ver como está esse machucado?

     Sinto meu corpo se enrijecer e Duncan se mexe desconfortável no sofá.

     – Vamos. – Respondo, mas sinto a tensão ficar cada vez maior, então olho rapidamente para Duncan que prossegue com o olhar firme em minha perna.

     Vejo Márcio destapar minha perna e começar a retirar a gaze ensanguentada. Evito olhar para ela, mas a curiosidade é maior e volto o rosto para os cortes enormes e ensanguentados, as linhas pretas dos pontos se projetando para fora como agulhas negras.

     – Sua cicatrização é rápida, isso é um ótimo sinal. – Ele diz enquanto empurra levemente minha perna para trás para olhar os cortes mais abaixo. – Agora vamos limpá-los para que continue melhorando.

     Faço um aceno de cabeça concordando enquanto vejo Duncan relaxar junto comigo. Logo em seguida o médico começa a limpar os cortes e fechar o ferimento com uma gaze nova. Quando terminou, deu uma saída rápida e voltou com uma seringa.

     – Não se preocupe é só um sedativo para dormir mais um pouco. – Diz gentil antes de levar a seringa até o tubo fincado na minha mão para injetar o líquido. – Logo você estará dormindo novamente e não sentirá mais dores.

    – Obrigada. – Agradeço contra vontade enquanto ele retira a seringa e some pela porta, então Duncan sobe na cama e pega em minha mão.

     – Logo você irá sair daqui, prometo. – Diz enquanto pouso minha cabeça em seu ombro e me aninho ao seu contorno.

    – Tudo bem. – Respondo e começando a sentir o efeito do medicamento. – Só acho que seria muito mais legal estar em repouso no seu apartamento.

     O ouço rir, o rouco de sua voz formando um ronronar quando meu ouvido está em seu peito, como se fosse um enorme tigre.

     – Concordo, essa cama é pequena demais para nós dois. – Concorda e o sinto se aproximar mais de meu corpo e o calor de sua pele me deixando mais confortável. – Mas só de estar com você nos braços já é o suficiente. – Ele beija o alto de minha cabeça enquanto fecho os olhos sentindo o torpor e a dormência correr por meu corpo. – Agora durma, estarei aqui quando acordar. – E quando vejo tudo a minha volta some.

 

Acordo à noite e o hospital está com um silêncio assustador. Olho para o lado, não vejo Duncan dormindo no sofá e nem sinal de alguém andando pelos corredores. Então olho para os lençóis da cama, os sentindo grudentos contra minha pele e vejo que a faixa em minha coxa está ensopada de sangue juntamente com os lençóis. Dou um pulo para trás sentindo o coração palpitar dentro do peito e pensando comigo se não haviam colocado outra bolsa de sangue da qual começou a vazar, mas quando olho esperando a encontrar pendurada ao lado da cama, simplesmente não a vejo.

     Aperto o botão de emergência do lado da cama, mas ninguém aparece para me atender, então jogo as pernas para fora da cama só querendo ajuda de alguém pela quantidade de sangue que perdi, mas quando meus pés tocam o chão caio por causa da falta de força. Levanto-me com dificuldade vendo o rastro de gotículas de sangue que deixei no chão. Tento correr para a porta, mas minha perna não permite e acabo me arrastando até ela. O fluxo de sangue só aumenta conforme ando, o que me deixa ainda mais assustada.

     Olho para os dois lados do corredor não vendo ninguém somente as macas reviradas, as luzes piscando e vários papéis jogados no chão. Então sem pensar muito começo a me direcionar para o lado direito do longo corredor sem saber para onde estou indo e a cada porta que passo vejo mais materiais hospitalares destruídos.

     – Tem alguém ai? – Pergunto com a voz embargada de preocupação e desespero que acaba por ecoar pelo corredor. – Preciso de ajuda!

     Vejo ao fundo uma porta dupla e um vulto passar em seu interior. Começo a me direcionar para lá com dificuldade e reclamando mentalmente pela enorme distância, então olho para baixo vendo o sangue escorrer mais por minha perna e tudo começa a girar conforme meu corpo fica sem forças.

     As luzes piscam rapidamente e quando voltam a ascender estou de frente para as portas duplas. Olho para trás não entendendo como cheguei tão rápido se anteriormente estava na metade do caminho, mas mesmo assim volto-me para ela e vejo uma placa logo acima que diz UTI. Empurro-as e entro em uma sala cheia de macas e aparelhos jogados no chão.

     – Oi. Tem alguém ai? – Pergunto.

     Ouço minha voz ecoar pela sala, mas desta vez em resposta veem uma voz esganiçada detrás da porta ao lado esquerdo. Corro até lá arrastando minha perna logo atrás, mas em meio à adrenalina piso em um bisturi que está no caminho cortando meu pé direito em uma linha horizontal.

     – Mas que merda! – Exclamo tentando ver o tamanho de sua profundidade, mas minha perna não permite que o puxe.

     Ouço outro grito vindo de lá e me obrigo a caminhar mais rápido. Empurro a porta e vejo a enfermeira de cabelos loiros segurando minha mãe na mesa de raio-x de costas para mim. Milena luta para se soltar, mas não consegue.

     – Larga minha mãe! – Grito enquanto caminho até elas com dificuldade.

     Empurro-a fazendo-a se chocar contra a parede e começo a puxar mamãe de cima da mesa, mas a risada da enfermeira me faz parar. Olho para trás e a vejo com pingos de sangue no rosto, alguns chegaram a escorrer por sua face. Seu sorriso bondoso se transformou em escárnio, fazendo com que me encolhesse de medo.

     – Finalmente você chegou. – Diz de uma forma animal, sua voz saí feroz enquanto me encara.

     – Bem onde queríamos. – Ouço mamãe dizer enquanto me viro e a vejo rindo sarcástica, como se não fosse ela mesma.

Antes que pudesse entender o que estava acontecendo elas me seguram contra a mesa de raio-x. Começo a me debater desesperada, mas minha perna começa a doer mais e mais, fazendo com que fique fraca rapidamente.

     – Me solta! – Grito com toda força, mas mamãe só ri alto.

     Vejo a enfermeira com uma seringa nas mãos antes de me virar e ver diversos itens cirúrgicos ao lado, só esperando o momento para serem usados. Mas então acordo no chão do hospital com enfermeiros me segurando com o olhar assustado, vejo mamãe mais ao fundo e a enfermeira me aplicando uma injeção no cano do soro que está ligado diretamente a minha veia.

     – Me solta! – Grito enquanto me debato desesperada não conseguindo distinguir o que é sonho da realidade.

     – Desculpe filha. – Diz mamãe chorando ao meu lado.

Continuo a me debater até meu corpo ficar fraco e não conseguir mais mandar ordens para meus músculos. Aos poucos a minha visão turva e caio sem forças na cama completamente inconsciente.

 

Acordo novamente de madrugada no hospital e olho para o lado vendo mamãe dormindo no sofá onde anteriormente Duncan estava, sinto o desespero aparecer lembrando-me do sonho e de que Duncan não está ali como havia prometido estar. Mas logo em seguida vejo uma sombra negra entrar pela porta e me encolho contra o lençol até que vejo as feições de Duncan aparecer devido aos postes de iluminação na rua.

     – Graças a Deus você está aqui. – Sussurro enquanto ele se aproxima da cama. – Onde, diabos, você esteve?

     – Não sei se você sabe, mas a minha bexiga não aguenta litros infinitos. – Ele rebate rindo de leve, mas logo seu olhar fica sério. – Por que, o que aconteceu?

     Encolho-me ainda mais na cama, mas logo paro quando sinto minha perna doer levemente então me limito a sentar. Mas algo chama minha atenção, uma leve dor no pé direito então o destapo e vejo-o enfaixado, com isso sinto tudo começar a girar.

     – Não foi um pesadelo. – Afirmo para mim mesma enquanto Duncan me olha assustado e senta na cama ao meu lado.

     – Do que está falando?

     Olho para ele, mas sem realmente o ver, não quando minha cabeça pensa em várias coisas ao mesmo tempo e em diversas possibilidades para o que ocorreu.

     – Duncan, não me diga que estou na UTI.

   – Você está. – Responde e pega em minha mão enquanto me examina com cuidado. – Você teve outro ataque de sonambulismo e acabou cortando o pé com um bisturi que uma enfermeira estava levando para uma cirurgia, que sem querer, deixou cair bem na hora que você passava. – Engulo em seco, mas ele prossegue me olhando atentamente. – Mas não foi isso que você sonhou, não é mesmo?

Faço um aceno de cabeça e conto detalhadamente o que sonhei. Duncan permanece em silêncio por um tempo depois que havia terminado.

     – Acho que estão brincando com sua cabeça, porque isso não parece ser uma previsão. – Finalmente diz depois de alguns minutos em silêncio.

      – Quem está brincando comigo?

     – Os demônios Luna. Eles devem estar por perto.

     O vejo levantar da cama e caminhar até a mochila, logo em seguida volta com uma caneta de tinta grossa na cor preta e se ajoelha embaixo da cama.

      – O que você está fazendo? – Sussurro, mas Duncan não responde por alguns minutos até que se levanta e senta na cama ao meu lado, mas antes de falar qualquer coisa me forço a olhar para baixo da cama percebendo que não há nada ali. – Mas não tem nada.

     – Você não consegue enxergá-lo agora. – Rebate, mas logo em seguida muda de assunto. – É o seguinte: coloquei um símbolo embaixo da sua cama para protegê-la enquanto estiver dentro desse círculo eles não irão encontrá-la, entendeu?

     Faço um aceno de cabeça.

     – Mas o que eles estão querendo? – Pergunto assustada.

     – Essa é a última coisa que você quer saber agora.

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Prólogo - Despertar da Magia

Acordo assustada, suando frio e tremendo. Levanto-me e corro para a janela do quarto, o chão de madeira range debaixo de meus passos pesados...

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Blog criado e administrado por Verônica F. Hörnne

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