5. Consulta

Algumas vezes os caminhos não são traçados por nossas atitudes.
Chegando ao consultório do Doutor Jair me sento no sofá e começo a folhar uma revista qualquer, só para ver se o tempo passa mais rápido e para poder sair correndo para longe do cheiro hospitalar. Nunca me senti confortável e não iria ser agora que começaria.
– Luna Prado... – Ouço Eduarda, a secretária chamar, então levanto o olhar distraÃda. – Pode entrar, por favor.
Aceno com a cabeça e lhe dou um sorriso tÃmido antes de me levantar e entrar no vasto corredor. Mal havia dobrado a direita e vejo Jair parado na porta me esperando, com sua estatura alta, o corpo magro e um sorriso largo no rosto.
Hoje está vestindo uma calça social preta, sapatos lustrosos e bem cuidados, uma camisa social branca com listras cinza para dentro da calça. Percebo que usa um cinto marrom escuro com a fivela preta, o que torna a sua aparência séria. Percebo que Jair até seria bonito e charmoso senão tratasse de mim há cinco anos e usasse um jaleco branco por cima da roupa. Sinto meu estômago embrulhar quando sinto o seu perfume um pouco cÃtrico no ar.
– Quanto tempo. – Diz apertando minha mão firmemente. – Achei que não voltaria mais para outra consulta. – Vejo que Jair levanta as sobrancelhas grisalhas, isso me chama atenção para outro detalhe que ainda não havia percebido, seu cabelo curto está mais branco do que era há dois meses.
Bem que eu gostaria, penso enquanto ele gesticula para que me sentasse na poltrona de um lugar em couro marrom. Passo o olhar por toda a sala antes de chegar perto da poltrona e percebo como esse consultório já virou uma segunda casa nesses cinco anos.
A parede ao fundo continua repleta de livros do chão ao teto, em uma prateleira grossa de madeira escura. A mesa de vidro a direita, atrás de uma enorme janela continua extremamente arrumada e limpa, a cadeira de couro com recosto maior na frente da minha, prossegue com minha ficha apoiada no acento. A mesa de vidro no centro, por debaixo de um tapete escuro e discreto, está sem as revistas sobre psicanálise, talvez essa seja a única coisa diferente.
– O que a traz aqui hoje?
– Minha mãe. – Respondo pouco à vontade. – Mal havÃamos colocado o pé em Rovena quando descubro que ela já havia marcado uma consulta.
– Nada que não fosse esperado. – Ele rebate educado e tira minha ficha do acento para poder sentar, percebo que estou com os olhos cravados nela, querendo fazer o possÃvel para pegá-la. – Mas me diga como se sentiu nesses dois meses?
O observo pegar o bloco de anotações que tanto me irrita, ainda mais por não saber o que está escrito ali. Talvez nunca saiba.
– Muito bem. – Respondo, tentado transmitir tranquilidade. – A propósito parei de tomar os remédios para insônia e calma.
O vejo semicerrar os olhos castanho claros me analisando, mas sem desmanchar o ar confiante e sério que tanto me deixa desconfortável.
– E houve alguma alteração? – Pergunta, mas antes que possa responder ele prossegue. – Não deveria ter parado de tomar os remédios sem o meu consentimento e sabe disso. Você não é mais uma criança Luna.
– Eu sei e por não ser mais que tomei essa decisão, que no caso me fez muito bem. – Rebato sem perder a confiança. – Cheguei a pensar que o senhor estava me drogando. – Dou uma leve risada para descontrair o ambiente, mas vejo seu maxilar serrar de leve.
Eu sabia, penso.
Já havia pensado sobre o assunto por muito tempo, por isso decidi parar de tomar os remédios para ter certeza. Sempre achei os remédios fortes demais e sempre me sentia entorpecida depois de tomá-los, era como se apagassem os meus sentidos, deixando vulnerável e até mesmo tonta. Até hoje não sei como consegui esconder meus problemas psiquiátricos do colégio inteiro, ninguém desconfia de nada.
– Você e sua imaginação. – Ele ri de leve, mas vejo a tensão passar por seus olhos. – Mas voltando à parte que interessa: Teve alguma alucinação ou sonambulismo nesses dois meses sem remédio?
Tento não me remexer na cadeira e nem desviar o olhar para dar a entender que estou prestes a mentir mais uma vez. Então prossigo o olhando com firmeza e acreditando na minha mentira como se ela realmente fosse real, talvez até mesmo palpável para ficar muito mais fácil prosseguir com a encenação.
– Não. Na realidade nunca me senti tão bem. – Sorrio levemente. – Foi à primeira vez desde a minha infância que consegui deitar a cabeça no travesseiro e não ter pesadelos ou alucinações.
– Isso é uma ótima notÃcia. – Exclama satisfeito depois sorri. – Significa que você já conseguiu superar os traumas passados, e isso não afeta você como afetava antes. – Ele dá uma pequena pausa. – Mas antes de chegarmos a qualquer conclusão final gostaria que viesse mais vezes, só para garantir que não vá ter uma recaÃda ou que eles voltem com mais intensidade.
Evito respirar fundo e mostrar desconforto sobre isso.
– Será realmente necessário, doutor?
– Sim, venho a tratando há cinco anos Luna não posso permitir que todo esse trabalho seja desfeito por um equÃvoco.
– Um equÃvoco? – Pergunto enquanto me ajeito na cadeira.
– Sim, pois acho que está mentindo para mim. Conheço você. Quase como se fosse seu pai. – Ele me examina novamente seus olhos castanhos claros sondando cada movimento meu.
Engulo em seco, não sabendo o que mais me deixa desconfortável: o fato de não ter tido um pai e ele querer possuir esse direito, ou se fico enojada por pensar que pode entrar ainda mais na minha vida como já está. Nunca fiz questão de me dirigir a ele como nada além de meu médico, por mais que já tenhamos alguma espécie de intimidade, justamente para não dar nenhuma abertura para minha vida pessoal. Isso implica minha mãe, que em uma época achei que possuÃa alguma espécie de relacionamento com Jair, e agradeço por não ter passado de uma suspeita.
– Sei que parou de tomar os remédios, nisso acredito, mas duvido muito que as alucinações e o sonambulismo tenham parado subitamente. – Prossegue rapidamente, mas na minha cabeça se passaram minutos.
– Por que acredita nisso, doutor? – Forço a pergunta para fora.
Começo a sentir um gelo crescer na boca do estômago e se espalhar pelo meu corpo, causando arrepios desconfortáveis.
– Por que os remédios eram fortes demais e a desintoxicação deles é demorada, claro que em dois meses não há mais resquÃcio nenhum em seu organismo. Isso significa que tudo voltou e irá se intensificar cada vez mais. – Responde e me olha preocupado, fazendo com que sinta que nenhum sentimento relacionado a mim é verdadeiro vindo da parte dele. – Então preciso ter certeza de que conseguimos combater esse lado obscuro da sua vida e seguir sem os remédios, ou voltar para eles com dozes maiores pelo menos até conseguir controlar seu subconsciente.
Engulo em seco.
– Acho que não precisarei mais tomar os remédios. – Rebato. – Mas concordo em ficar em observação por um tempo só para tranquilizá-lo e a minha mãe.
Ele concorda com um aceno de cabeça e prosseguimos com a consulta normalmente, mas não conseguia me concentrar como deveria, quando só ficava cuidado o relógio no alto de sua cabeça. Quando finalmente terminou, saio rapidamente do consultório e pego o primeiro ônibus que passou na parada, de tão desesperada que estava. Acabo parando uma rua antes de chegar ao Lago Cristal, começo a andar com o pensamento distante tentando achar um modo de chegar a alguma parada ou loja para descobrir como voltar para casa.
Dobro a rua e avisto o belo lago, meus olhos são tomados pela beleza desse lugar que poucas vezes vim com Valentina quando era pequena, e quando percebo estou caminhando em sua direção. Sinto uma pontada no peito de saudades daqueles momentos, então deixo meus olhos captarem cada detalhe para ser transportada temporariamente para aquela época.
O lago é mais extenso do que lembrava e ao seu redor é coberto de árvores altas, algumas com o tronco largo e casca grossa, outros finos e de folhas escuras, dando um contraste com a grama verde clara. Ando até um banco de madeira e me sento olhando a água verde e os patos brancos nadarem perto da beira. Ao lado direito do lago há uma vasta floresta e do outro, apartamentos chiques da classe alta da cidade.
Volto minha atenção para os patos tentando esquecer a consulta anterior com o doutor Jair e das futuras vezes que terei de voltar lá. Mas o que mais me preocupa é o fato das alucinações não terem parado, não depois de ouvir a risada de uma criança que não estava lá há algumas horas atrás.
Jogo a cabeça nas mãos deixando os cabelos longos e castanhos formarem uma barreira em torno de mim, uma cortina para me esconder do mundo. Mas antes mesmo de ouvir uma voz me surpreender já havia sentido o gelo misturado com estatÃstica sobre minha mancha.
– O que está fazendo aqui?
Viro assustada e vejo Duncan apoiado no encosto do banco. Ele tira os óculos espelhados e me examina surpreso, com um sorriso torto nos lábios. Fico parada o olhando sem saber o que fazer e quando percebo já estou de pé.
– O que você faz aqui?! – Pergunto espantada e começo a dar passos contidos para trás. – Você está me seguindo, é isso?
Duncan ri alto e dá um passo à frente.
– Eu não, mas parece que você que está me seguindo. – Rebate e se senta no banco esticando as longas pernas. – Tudo bem, sei que sou irresistÃvel, mas não precisa ficar desesperada ao ponto de vir até minha casa.
Olho para Duncan espantada, mas logo solto uma risada nervosa. Apesar de saber que está brincando com a situação, não consigo deixar de ficar rÃgida com tudo isso. Meu sexto sentido pede para recuar e ficar em alerta, mas por algum motivo não consigo mais me mover.
– Você não mora aqui. – Afirmo convicta, não dando nenhuma oportunidade ou abertura para dizer o contrário, mas parece ser uma coisa óbvia somente para mim.
Ele cruza os braços por cima da camisa preta e me fita observador, mas sem deixar sumir o sorriso torto nos lábios.
– Sim, moro aqui. Mais um equÃvoco seu. – Rebate e joga o corpo para frente, apoiando os cotovelos nas pernas, sem tirar os olhos dos meus. – Mas a pergunta mais importante é: O que você está fazendo aqui? Achei que irÃamos nos encontrar mais tarde, não que você viria aqui me buscar.
– Eu... Eu... – Engasgo com as palavras, ainda não acreditando que ele mora no bairro mais chique da cidade e de como vim parar aqui de repente. – Eu me perdi.
Ele me examina com atenção e por um curto momento fico com medo que consiga descobrir onde estava, como se tivesse acesso à s partes mais Ãntimas dos meus problemas emocionais, mas isso só poder ser coisa da minha cabeça.
– Quer carona? Estava indo encontrar você mesmo.
– Você vai me dar uma carona? – Pergunto espantada enquanto sou retirada dos meus devaneios subitamente.
Ele ri de uma forma sombria antes de levantar. Duncan olha para baixo para poder responder e consigo me sentir ainda menor. Observo o que está em minha altura, seu peito largo e sou obrigada a esticar o pescoço para trás, finalmente encontrando seus olhos.
– Sim, ou você desistiu de me ajudar com as matérias? – Pergunta e começo a ficar um pouco irritada com isso, parece que posso mudar sempre de ideia, como se ele nunca soubesse o que esperar de mim. Isso faz com que fique ainda mais desconfiada, dando a entender que tem uma ficha minha, assim como Jair.
– Não. É só que ainda estou processando o que está acontecendo. – Admito enquanto olho para as casas ao longe, do outro lado do lago, me questionando o que fazer a respeito. Não sei se posso jogar os dados da sorte e rezar para que não aconteça nada comigo se pegar uma carona com Duncan, mas não posso ficar sempre retraÃda quando o assunto é ele. – Eu só tenho que passar em casa antes de ir para o colégio, preciso pegar os cadernos com as matérias.
Ele abre um sorriso largo e vejo uma sombra passar por cima de seus olhos. Arrepiei-me de medo, mas não dei nenhum passo para trás, pois finalmente percebo que Duncan não me assusta tanto como antes e sim me intriga.
– Podemos ficar por lá então, assim não precisamos fazer outra viagem para ir ao colégio. – Ele pisca um olho para mim. – Faz tempo que não vejo a sua casa.
Sorrio sem jeito e sentindo o rubor tomar meu rosto, então pigarreio desconfortável a procura de uma desculpa rápida, mas tudo o que consigo ver são imagens da nossa infância brincando no pátio. Começo a me questionar se ele mudou tanto assim, se o garoto que frequentava a minha casa quase todos os dias está dentro deste homem na minha frente hoje em dia.
– Não. – Rebato calmamente, deixando a desconfiança tomar as rédeas. – Até porque você continua sendo um estranho.
Ele finge espanto, o que foi engraçado devido ao seu tamanho.
– Um estranho? Que frase mais forte para ser dita a um velho amigo.
– Velho amigo, bem lembrado.
Ele me examina por um longo momento, e de uma forma intensa que acabou por me fazer sentir nua no meio na rua. Desvio o olhar rapidamente para dois patos brancos nadando no lago, emergindo a cabeça da água e sacudindo as penas.
– Vou mostrar pra você que não sou um monstro ou um criminoso.
– Você já prometeu isso e até agora não fez nada. – Rebato rindo e logo percebo que não deveria ter feito isso.
Os olhos de Duncan me sondam de uma forma diferente, como se estivesse avaliando o terreno que está prestes a pisar. Minhas mãos tremem e as fecho em punho enquanto ele dá mais um passo para frente, então percebo que não está mais tão longe, o que me faz querer fugir. Qualquer proximidade com ele me faz querer recuar, como se fossemos imãs opostos, mas me obrigo a ficar firme.
– Já estou fazendo isso e nem percebeu. – Rebate calmamente, deixando sua voz mais rouca que o habitual. Então nossos olhos se encontram e não consigo desviar, sinto que está me sugando com uma sede intensa e entendo tarde demais que estou gostando.
– Onde é sua casa mesmo? – Pergunto sem saber quando tempo se passou e viro de costas rapidamente, cuidando para não tropeçar no piso de pedra e procurando ar que havia faltado. Ouço Duncan rir baixinho. – Como você pode morar aqui?
– Por que o espanto? – Pergunta e começa a andar ao meu lado em poucas passadas, encontro seus olhos por um curto segundo e percebo que me sondam ousados.
– Por que esse lugar parece não combinar com você. – Respondo hesitante e logo penso que pode entender errado o que falei. – Quero dizer, não sei explicar, mas aqui parece contido demais para o que está acostumado.
Olho Duncan de esguelha sem saber se consegui me expressar direito, e começo a ficar receosa de que entenda tudo completamente diferente de como queria soar.
– Você consegue ler as pessoas mesmo quando não deseja, não é? – Pergunta mais para si mesmo, mas logo sorri torto. Logo franzo o cenho de leve quando me perguntando como ele sabe que consigo fazer isso, ler a reação das pessoas e conseguir saber como são internamente? – Na realidade tenho um apartamento aqui que meu avô me deixou como herança antes de partir. Não sei se você se lembra, faz muito tempo.
– Lembro sim. – Afirmo grata por o assunto ter mudado, enquanto procuro qual desses prédios tem um apartamento em seu nome. – E qual desses é o seu? – Aponto para as construções lado a lado.
– Você já vai ver.
Andamos mais um pouco e de repente ele para na frente de um prédio de três pisos escuro, em tons em preto, dividindo espaço com as paredes de vidro e detalhes em madeira. Toda a fachada do térreo é um vidro, consigo ver a recepção à direita com um balcão preto polido e um homem vestido socialmente atrás com um monitor à sua frente, à esquerda há uma pequena área de espera, com um sofá preto de três lugares e duas poltronas da mesma cor, e mais atrás dois elevadores cromados. A frente é cheia de pedras dividindo espaço com os arbustos e pequenas árvores. Perdi o fôlego olhando e vendo que ele combina perfeitamente com Duncan, apesar do seu estilo bad boy ele tem uma aparência elegante que só se sobressai com as roupas escuras.
– O que achou? – Pergunta e viro para olhá-lo tentando me recompor.
– Achei muito parecido com você. – Respondo e não pude deixar de sorrir levemente. – Seu avô lhe conhecia bem pelo jeito.
– Mais do que possa imaginar. – Responde sorrindo torto e fez com que me perdesse no tempo por alguns segundos, imaginando se o relacionamento dos dois era relativamente parecido com o meu e o de vovó. – Por favor... – Ele gesticula em direção as portas de vidro, fazendo com que despertasse e começasse a andar hesitante.
Observo Duncan seguir Luna enquanto ela caminha em direção ao prédio. Ele sorri a tranquilizando e aos poucos ela relaxa a postura, mas prossegue alerta. Percebo que Luna não sente mais medo dele e sim uma espécie de curiosidade intrigante. Conheço-a suficientemente bem para saber que isso será o suficiente para se tornar algo tão grande e profundo que não terá mais forças para lutar contra. E mal sabe ela que nenhuma notÃcia boa chegará com ele, como assim imagina. Mal sabe minha neta que toda a sua vida está prestes a mudar.
Afasto-me de trás da árvore de tronco claro e viro-me para o lado oposto, rezando que ela consiga compreender e que Duncan seja forte pelos dois, pelo menos, no tempo que for necessário. No tempo que ela necessitará para se reerguer.