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10. Segunda Fase

Tique-taque grita o relógio

    Avisto a floricultura do outro lado da rua, com a sua forma de quiosque, com o teto abobadado, a estrutura branca com salmão e as portas de vidro, onde mostra todo o seu interior e o chão de madeira escura. Sinto meu corpo inteiro vibrar como se tivesse com sobrecarga de energia e com um passo de cada vez, atravesso a rua e entro na loja. Logo vejo mamãe atender um homem jovem no caixa, mas decido esperar ele ir embora para puxá-la para um canto.

     – Demorou para chegar hoje. – Ouço Maria falar, então me viro e a vejo cortar pequenos pedaços de um caule de Cravo. – Sua mãe está desesperada, porque não consegue dar conta de ajeitar os buquês com as flores que chegaram ontem.

     – Já vou cuidar disso. – Respondo e tento ser educada com uma senhora de sessenta anos. – Só preciso resolver uma coisa antes e ajeito os buquês.

     Vejo que Maria me observa atenta com seus profundos olhos azuis e sábios, antes de largar a tesoura e o Cravo na prateleira. Parece muito mais velha do que a última vez que a vi há alguns dias, talvez seja o fato de não ter realmente reparado em como suas rugas de expressão estão mais evidentes, seu tamanho também diminuiu consideravelmente – talvez ache isso, porque cresci excessivamente da noite para o dia –, mas algo em Maria parece mais frágil do que os simples cabelos brancos.

     – O que está acontecendo, Luna? – Pergunta preocupada. – Você está muito tensa. Há alguma coisa que eu possa fazer?

     – Não, não é nada demais. – Respondo e forço um leve sorriso.

     – Sei que passou mal ontem, está melhor?

     – Sim. Obrigada.

     Maria fica em silêncio por algum tempo e logo em seguida volta a ajeitar os buquês percebendo que não estou querendo jogar conversa fora. Sinto-me culpada por isso, mas não consigo tirar da cabeça as coisas que vi naquele cemitério a pouco e como tudo isso está relacionado à minha mãe. Então observo o homem a agradecer e se direcionar para a saída. Vejo os olhos de mamãe parando nos meus e logo em seguida respirar aliviada, como se estivesse esperando algum milagre e ele se realizasse.

      – Graças a Deus você chegou! – Diz e me abraça rapidamente, mas não consigo corresponder na mesma intensidade. – Preciso de ajuda com os buquês de rosas brancas, temos uma grande entrega neste fim de semana... – Mamãe se cala e me observa preocupada. – O que aconteceu Luna? Você parece tensa.

     – Preciso conversar com você. Agora.

     Vejo Maria rapidamente lançar um olhar para ela de quem diz “não sei o que está acontecendo” e Milena se volta para mim preocupada.

     – O que aconteceu? Você está pior?

     – De certa forma sim. – Respondo e começo a me encaminhar para o escritório, que é a única parte da floricultura que não fica exposta para quem passa na rua.

    Não preciso olhar para trás para ter certeza de que está me seguindo, porque consigo sentir sua presença atrás de minhas costas, enquanto entro no pequeno escritório e logo em seguida mamãe fecha a porta atrás de si.

     – O que está acontecendo Luna, porque me trouxe até aqui?

     Cruzo os braços sobre o peito tentando manter o equilíbrio e ver se consigo parar de tremer, não posso demonstrar isso na frente dela quando na verdade só quero chorar.

     – Por que começou a me levar no psicólogo?

     – Essa história de novo, filha?

     – Por que mãe? – Levanto os olhos para ela mostrando o quanto determinada estou em saber a verdade.

    – Por causa das suas alucinações e pesadelos, você sabe disso. – Milena suspira. – Tudo piorou quando sua avó morreu e tanto você como eu queríamos respostas para as coisas que você estava passando.

     – Por que nunca me disse que o que via eram espíritos? – Pergunto e descruzo os braços antes de fechá-los em punho. – Por que em vez de me contar a verdade você fez com que me esquecesse de algum modo? Provavelmente foram os remédios que estava tomando, com o uso contínuo acabou por apagar minha memória.

     – Do que está falando filha? – Pergunta depois de um tempo em silêncio e começa a caminhar em minha direção, mas levanto a mão para que parasse onde está, pois não consigo a olhar por mais de um segundo.

      – Por que continua tentando fingir? – Pergunto, mas logo prossigo com a linha de pensamentos, tentando entrar no seu jogo sem perder a objetividade. – Tudo bem então. E se dissesse que me lembro de tudo, você iria continuar com esse teatro?

     Mamãe começa a me encarar assustada, mas logo a observo engolir e tentar falar apesar de começar a parecer nervosa.

     – Como assim? Você se lembrou de quê?

     Suspiro alto e me viro de costas para ela já cansada dessa conversa, mas arrasada por saber que estava mentindo este tempo todo e que quer continuar. Então sinto minha mancha esquentar novamente, queimando levemente sobre a pele.

     – Me lembro das coisas que vovó me falava antes de morrer. – Digo e me viro para encará-la. – Lembro que ela sempre afirmou que há vida depois desta, que existem espíritos e que os via. – Engulo em seco. – O que eu sou mãe?

     Mamãe diminui o espaço entre nós e me abraça firmemente, me embalando como fazia quando tinha algum pesadelo ou alucinação, como se pudesse arrancar todos os medos que sinto simplesmente por força de vontade. Algo que Valentina realmente conseguia fazer, talvez seja por isso que me sentia tão segura com ela e não com mamãe, enquanto vovó conseguia os resultados, Milena só tentava arduamente.

     – Calma filha. – Ela diz perto de meus cabelos. – Vamos ao doutor Jair juntas semana que vem e resolveremos tudo isso, provavelmente ele terá...

     Afasto-a com um empurrão e a encaro perplexa.

     – Depois de tudo o que acabei de falar, de que descobri o que tanto tentou me fazer esquecer você simplesmente quer me mandar de volta pra lá? Como se nada tivesse acontecido?

      – Como pode dizer uma coisa dessas? – Pergunta. – Nunca tentei fazê-la se esquecer de nada, nem sei do que está falando. – Ela me olha preocupada. – Só acho que pelo fato de ter parado de tomar os remédios, é que está piorando. Sabia que não era uma boa ideia concordar com isso...

     – Não. – Digo a interrompendo. – Essa foi à coisa mais certa que fiz em toda a minha vida.

     Viro as costas para ela e abro a porta decidida a sair o quanto antes.

     – Onde você pensa que vai Luna? – Ouço mamãe gritar com a voz embargada autoridade, mas não consigo mais respeitá-la como era antes.

      Viro-me com raiva quando estou perto das portas de vidro.

     – Vou fazer outra coisa certa da minha vida! – Grito em resposta e saio para a rua sem olhar para trás.

      Caminho sem saber para onde ir, simplesmente pelo fato de caminhar e me distanciar o quanto antes de qualquer lugar que lembrasse minha mãe ou vovó. Com o passar do tempo, Milena ficou lingando incontáveis vezes para meu celular e finalmente decido desligá-lo enquanto caminho sem rumo, só paro quando finalmente percebo que o crepúsculo está querendo começar a aparecer, então vejo que estou do outro lado da cidade. Então decido pegar um ônibus e passar em casa só para pegar uma muda de roupa, com completa certeza de que não dormirei em casa hoje. Quando finalmente chego à frente de casa à noite já se ergueu e reparo que as luzes estão apagadas e com isso respiro fundo de alívio, pois a última coisa que quero nesse momento é encontrar mamãe e ter outra briga.

      Destravo a porta e subo correndo para meu quarto sem esperar duas vezes para pegar a mochila e guardar algumas roupas e minha escova de dente, por último pego minha carteira, confirmo o dinheiro que tenho e logo saio para rua novamente.

     Pego meu celular do bolso quando me encaminho para a parada. O número de Ágatha está nas discagens rápidas e depois de três toques ela atende.

     – Disque “socorro amiga” falando. Em que posso ajudá-la? – Diz do outro lado da linha.

     – Você já está sabendo. – Resmungo.

    – Claro, sua mãe está com a minha na sala de casa esperando que você apareça a qualquer momento, mas como sinto que isto não irá acontecer...

      – Verdade. – Concordo enquanto paro na faixa esperando o sinal fechar. – Não posso dormir em casa hoje e muito menos na sua.

      Ouço Ágatha suspirar do outro lado da linha.

     – E onde pensa que irá dormir? – Pergunta, mas logo faz uma pequena pausa. – O que realmente aconteceu entre vocês?

    – Vou dormir em um hotel no centro da cidade. – Respondo contra vontade. – O que aconteceu? Bom, ela simplesmente continuou mentindo pra mim e não tenho a menor vontade de voltar para casa e brigar novamente.

     – Acho que não é uma boa ideia mesmo. – Ágatha concorda. – Sabe, sem querer, acabei ouvindo uma boa parte da conversa que elas estavam tendo. Quer dizer, até minha mãe perceber que estava ouvindo. – Fico em silêncio enquanto atravesso a rua e me encaminho para a parada. – Pelo que entendi, Milena está querendo levá-la a força para o Doutor Jair.

      – Ela não pode fazer isso. – Rebato do outro lado da linha.

     – Na realidade ela pode amiga. Não se esqueça de que até amanhã você é menor de idade. – Rebate, mas faz uma pequena pausa. – A propósito, como irá dormir em um hotel se é menor de idade?

      Não havia pensando nisso, a raiva era tanta que não estava realmente ponderando as consequências sobre o que estou prestes a fazer.

      – Não pensei nisso. – Afirmo. – Meu Deus! Não posso voltar pra casa, não depois do que você acabou de me contar. – Solto um gemido de frustração. – Pra onde vou à uma hora dessas?

      – Não quero dizer, mas acho que a única solução é voltar para casa. – Ágatha solta um leve suspiro. – Sinto muito amiga. Se sua mãe não estivesse aqui, diria para vir correndo, mas foi o primeiro lugar que ela pensou em passar.

      Olho para o chão frustrada pensando que não há outro lugar para ir. Então, arrastando um pé de cada vez, viro-me e volto para o caminho que havia feito.

      – Tudo bem. – Resmungo uma concordância, mas logo percebo que há uma luz no fim do túnel. – Vou para praia hoje.

      – O quê? – Ágatha exclama. – Você só iria amanhã de noite e Milena já comprou as passagens.

     – Sim, por isso eu posso transferir uma delas pra hoje. Irão me permitir entrar, porque a passagem já está comprada. – Rebato enquanto atravesso a rua com empolgação, meu cérebro funcionando na capacidade máxima. – Pelo menos terei em torno de doze horas pra esfriar a cabeça até mamãe pensar onde posso estar.

      – Isto é uma loucura Luna! – Ágatha exclama assustada. – São três horas de viagem até Farol do Sul, sem contar em como você vai ficar lá sozinha por todo esse tempo. É perigoso.

      – Eu ia ficar esse mesmo tempo em um hotel se pudesse! – Rebato sem fôlego enquanto acelero o passo pra chegar mais rápido. – O importante é que preciso de um tempo sozinha, preciso colocar algumas coisas em ordem. E logo estarei de voltar, provavelmente com Milena como escolta.

      – Não estou gostando dessa ideia. – Ágatha rebate, mas quando estou prestes a tentar convencer, ela continua. – Mas mesmo assim não contarei pra ninguém onde você está, mas em troca tem que me prometer que me manterá informada, ok?

      Reviro os olhos antes de atravessar a rua.

      – Tudo bem. – Concordo. – E pelo que creio tudo irá mudar amanhã.

      – O que quer dizer com isso?

      – Estou falando que me lembrei de tudo antes de vovó partir, tudo o que havia esquecido voltou.  – Respondo e sinto uma leve alegria no tom da minha voz. – Ágatha, sinto que pela primeira vez desde que Valentina morreu que estou lúcida.

      – Ouvi Milena dizer para mamãe que você havia parado de tomar os remédios. – Diz e faz uma pequena pausa como se quisesse organizar os pensamentos. – Você acha que isso tem a ver com o fato de ter parado de tomá-los?

       – Não acho, tenho certeza. – Afirmo. – Sempre achei que os remédios que me indicava eram fortes demais, eram o suficiente para dopar um cavalo, para mim, o suficiente para me causar amnésia temporária enquanto os tomasse.

      – Mas por que lhe indicariam remédios para amnésia? – Pergunta. – Tudo bem que você e Valentina eram extremamente ligadas, mas não pode ser só por isso.

     Respiro fundo antes de responder qualquer coisa.

      – Ágatha, lembra que o Jair sempre afirmou que as coisas que via eram alucinações? – Pergunto e a ouço concordar do outro lado da linha. – Na realidade as coisas que vejo são pessoas mortas. Quando minhas lembranças voltaram veio à confirmação de vovó me falando sobre isso.

      – Você só pode estar brincando comigo. – Ágatha exclama. – Você é uma espécie de paranormal ou algo assim? – Abro a boca para responder, mas simplesmente ouço um gritinho do outro lado. – Isso é muito legal!

      Rio rapidamente me deixando ser levada pela tranquilidade com que Ágatha está levando essa nova notícia.

      – Só não sei por que o Jair mandou tomar esses remédios, talvez estivesse sem querer me fazendo esquecer meu passado.

      – Acho que não. – Ágatha rebate do outro lado da linha. – Talvez ele simplesmente estivesse lhe dando remédios para parar de ver espíritos, talvez ele nem soubesse que fazia isso, mas de algum modo viu que funcionou e decidiu continuar. Vai saber.

      – Pode ser como pode não ser também. – Resmungo pensativa. – Só lembro que antes de tomá-los morria de medo por causa das coisas que via e vovó não estava ao meu lado para explicar o que era ou fazer algo a respeito.

      – Mas Milena não fazia nada?

     – Ela só dizia para fechar os olhos e esquecer. – Respondo e rio sarcástica. – Como se isso funcionasse de algum modo. – Coloco a chave na fechadura de casa e entro. – Só sei que depois que comecei a ir ao psicólogo ele receitou esses remédios que fizeram com que as “alucinações” parassem por um tempo. Depois aprendi a lidar com elas e se tornou mais fácil com o passar do tempo.

      – Eu me lembro disso. – Ágatha concorda. – No final das contas ele não deixou de lhe ajudar da forma que podia.

      – Você até que está certa, mas não muda o fato de terem me feito esquecer coisas fundamentais da minha infância.

      – Talvez por que acharam que era o melhor para você.

      Suspiro pesadamente e entro no quarto jogando a mochila sobre a cama, sabendo que a única forma de saber a verdade é indo até o consultório falar com o Doutor Jair, mas algo nessa hipótese confirmou o fato de que provavelmente não iria sair como entrei.

      – Tem um fundo de verdade. – Concordo finalmente. – Será que era por isso que mamãe brigava tanto com a vovó? Por que ela queria me explicar o que via, mas mamãe não concordava?

      – Provavelmente sim.

      – Mas isso não justifica. – Resmungo e faço uma pequena pausa pensando se devo ou não tocar no assunto. – Ágatha, se lhe disser uma coisa você promete que não me chama de louca?

      – Amiga, desde que éramos crianças nunca lhe chamei de louca ainda mais quando tudo indicava que sim.

      Rio sem jeito do outro lado da linha.

      – Na minha lembrança vovó dizia para Milena que tudo mudaria quando completasse dezoito anos. – Digo e penso por um momento antes de continuar. – E tudo na realidade mudou amiga.

      – Está falando sobre estar parecendo a Rapunzel?

      – Sim. – Concordo. – Depois que passei mal acordei desse jeito e hoje sinto que meu corpo inteiro vibra como se estivesse com uma sobrecarga de energia.

     – Como assim? – Ágatha exclama. – Você já foi ao médico?

     – Não. – Sorrio cansada. – Sinto que nenhum médico pode me ajudar.

 

Logo que terminei de falar com Ágatha liguei para a rodoviária e transferi a passagem para o primeiro horário naquela noite, por sorte consegui para as nove horas, o que me daria tempo tranquilo para chegar. Antes de sair separei um pouco de comida e guardei na mochila junto com a passagem, peguei a chave da casa da praia e sai sem olhar para trás.

      Passei a viagem toda encarando o vidro da janela sem realmente vê-la, os pensamentos voando tão frenéticos que não houve possibilidade de dormir, e quando o ônibus finalmente parou na rodoviária de Farol do Sul, fui uma das primeiras a descer.

      Passo a chave a porta e entro na casa escura e deserta, não me preocupo em acender luz nenhuma enquanto tranco a porta e ando até o sofá. Jogo a mochila sobre uma das poltronas e me deito na maior, esticando o corpo, encaixando-o perfeitamente nas curvas das almofadas enquanto tiro as sapatilhas e adormeço de imediato.

     Abro os olhos e só consigo enxergar a escuridão da floresta. O silêncio se propaga como se não houvesse nada além de mim e pés descalços na relva úmida. Consigo ouvir a respiração e meu coração bombeando sangue para o resto do corpo, como se fosse de certa forma parte deste lugar.

     Olho para os lados sentindo que sou uma presa fácil como se estivesse rodeada por animais querendo me devorar, mas o silêncio é tanto que chego a duvidar sobre isso. Começo a andar com medo por entre as árvores, sentindo que o predador está cada vez mais perto, então me viro percebendo que não há nada logo atrás, por mais que prossiga tendo essa certeza.

      Minha respiração se torna ofegante conforme ando com mais urgência e consigo ouvir os batimentos de meu coração, como se este tivesse ao lado da orelha, mostrando o tamanho do meu medo. Ouço um barulho logo atrás e pareceu tão alto devido ao silêncio que não olho para trás, simplesmente corro me desviando das árvores e rezando para não cair. Avisto uma cabana de madeira logo à frente quando ouço um rugido feroz, tropeço rapidamente, mas não paro até alcançar a maçaneta da porta e quando a abro tudo o que vejo é a claridade.

      Acordo com o rosto colado no chão e meu braço direito ardendo tanto que parece que está pegando fogo, mas nada se compara a ardência agonizante em minha mancha. Sinto braços protetores a minha volta e uma respiração ofegante de homem. Desvencilho-me rapidamente e me levanto com dificuldade sentindo minha perna direita doer intensamente. Então olho para o chão e vejo Duncan gemendo de dor enquanto levo meu olhar para onde estamos, percebendo que estou na beira da praia no rochedo que dá para o farol.

      – O quê? – Pergunto, mas sem realmente conseguir acordar.

      – De nada. – Duncan resmunga enquanto se coloca de pé. – Não há de quê. Não, não, não precisa agradecer. Capaz.

      Volto-me para ele ainda atordoada e sem conseguir entender como pode estar aqui, há quilômetros de Rovena.

      – O que você está fazendo aqui? – Pergunto, com a mão esquerda segurando o braço direito enquanto sinto meu ombro doer.

      – Isso não é importante agora. – Responde e paro para o olhar melhor percebendo que está com uma calça de moletom preta, uma camisa da mesma cor, um moletom amarrado na cintura e uma mochila nas costas. – O que você está fazendo aqui?

      – Como você tem a cara de pau de querer respostas? – Afirmo e sentindo uma dor latejante se expandir para meu braço. – Ai meu Deus, acho que desloquei o ombro.

      O vejo se aproximar de mim, automaticamente dou um passo atrás com dificuldade e quase caio, fazendo com que Duncan me segurasse pelo braço bom. Seus olhos negros me fitam com intensidade e sinto minha mancha esquentar.

      – Só quero ver como está o seu braço. – Diz calmamente enquanto sinto seu hálito de menta ser levado pelo vento. – Pode ser sério.

      Com isso me deixa firme no chão e puxa o colarinho da minha blusa para baixo, o suficiente para poder olhar o ombro sem precisar retirá-la.

      – Sinto informar, mas com a queda ele realmente saiu.

     – Com a queda? – Pergunto surpresa, mas ainda sentindo grande desconforto por não entender como ele está em todos os lugares que preciso.

      – Você estava andando para o fim do rochedo. – Responde calmamente. – Você ia cair quando a puxei de volta, então começou a se debater e caiu de mau jeito... Comigo por cima.

      Rapidamente fico rígida de pavor, entendo da onde a claridade da cabana vinha, com isso olho para o enorme farol quase oculto pela escuridão, sinto um calafrio intenso e sei que não é por causa do vento gélido da beira do mar.

     – Está dizendo que quase mor...

     – Sim.

     Volto a olhá-lo com o cenho franzido, ainda sem saber o que fazer.

     – Por que você está aqui? – Pergunto novamente. – E de mochila?

     Duncan me avalia silenciosamente e não consigo identificar que emoção está passando sobre o seu rosto de tão impassível.

     – Vim por causa de você. – Responde simplesmente e deixo essa frase pairar entre nós sem saber o que falar. Ficamos em silêncio por um tempo, um encarando o outro até que subitamente prossegue falando e sinto o chão se abrir sobre meus pés. – Você precisava de mim.

      Percebo que uma nuvem passa acima de nós, fazendo o seu rosto ser oculto rapidamente, mas logo a luz do farol ilumina seus olhos e sei que apesar de ser a coisa mais assustadora que poderia ouvir, não sinto nenhuma dúvida a respeito. Mas prossigo imóvel, enquanto meu cérebro martela rapidamente procurando uma solução, mas nada faz sentido até que um trovão rasga o céu e começa a chover.

     – Eu juro que explicarei tudo. – Duncan fala alto para ser ouvido entre os trovões e a chuva que se intensifica. – Mas você tem que confiar em mim.

      Semicerro os olhos e percebo uma ruga de preocupação sobre os seus olhos suplicantes, como se necessitasse de tempo.

      – E quem me garante isso? – Pergunto. – Você nunca foi sincero comigo! – Fecho o rosto por causa da chuva e de repente sinto a raiva crescendo. – Você simplesmente aparece aqui do nada, de madrugada, salva minha vida sem nem ao menos explicar o porquê está aqui e quer que eu o convide para entrar e tomar um café?

     – Luna, eu sei que você tem todos os motivos para não confiar em mim. – Exclama mais alto quando um raio cai no mar. – Mas preciso me explicar e você precisa saber a verdade. Eu juro, que se não quiser mais me ver na sua frente, simplesmente virarei as costas e irei embora sem olhar para trás.

      Avalio-o sem demora, ponderando tudo o que disse e acabo fazendo um aceno positivo com a cabeça, que acaba sendo o sinal para sairmos da chuva. Duncan me ajuda a caminhar até chegarmos à frente de casa, logo vejo a sua moto estacionada ao lado o que me faz franzir o cenho, mas logo vejo a porta de entrada aberta e me lembro de que em todos os meus ataques de sonambulismo isso acontece, apesar desse sonho ser extremamente diferente dos outros.

      Subitamente esse devaneio é deixado de lado quando sinto minha mancha de nascença ficar gelada. Olho para os lados e vejo algumas pessoas vestidas de branco estarem dispostas ao longo da rua, algumas escondidas ao lado das casas já outras no meio da rua, todas olhando fixamente para nós.

     – Duncan... – O chamo sentindo todo meu corpo voltar a tremer.

    Ele olha para mim, mas simplesmente aponto o dedo na direção de todos sem conseguir pronunciar nada, como se houvesse mãos invisíveis em torno de minha garganta. Então sinto sua mão urgente em minhas costas e subitamente seu corpo fica rígido. Duncan me dá um leve empurrão para que entre, como se quisesse fazer com que sumíssemos de vista.

      – O que foi aquilo? – Finalmente consigo perguntar quando chaveio a porta.

      – Não é nada. – Responde sem me olhar. – Só vamos cuidar desses machucados.

      Ele sai andando pela casa a procura de um kit de primeiros socorros, então me limito a sentar no sofá ainda em choque e sem conseguir absorver tudo o que está acontecendo. Logo o vejo voltar com o pequeno kit que temos e se sentar ao meu lado, avaliando o que teria de fazer primeiro.

     – Sinto lhe informar, mas precisamos colocá-lo no lugar. – Finalmente fala e não preciso perguntar sobre o que está se referindo.

      – Acho melhor irmos ao médico então. – Afirmo e sinto meu corpo inteiro virar gelo conforme a ideia do quanto irá doer se instala no meu cérebro.

      – Se você conseguir se segurar em mim com um único braço, tudo bem.

     Levo um tempo para finalmente entender sobre o que está falando, mas logo a imagem da sua moto estacionada aqui do lado vem em minha cabeça e sinto outro calafrio.

     – Tudo bem. – Respiro fundo. – Mas, por favor, faça isso logo.

     Duncan levanta e me ajuda a fazer o mesmo, logo em seguida suas mãos quentes estão sobre meu ombro, uma na frente e outra atrás, e sem querer me encolho de medo.

      – Você precisa relaxar se não irá doer mais.

     – Eu sei. – Resmungo e respiro fundo deixando meu corpo aos poucos descongelar e antes mesmo de ter ficado alerta ele o puxou para trás. Ouço um “clek” e sinto a dor se expandir para meu braço, o deixando mole como cola derretida. – Ai!

      – Calma, o pior já passou. – Diz e o vejo andar novamente para o kit. – Segura o braço assim, isso mesmo.

      O vejo mexer rapidamente lá dentro e se sentar ao meu lado com uma tesoura, pomadas, esparadrapo e adesivos. Ele pega a tesoura e leva para meu braço direito começando a cortar a manga.

      – Ei, o que está fazendo? – Pergunto e me afasto levemente.

      – Estou cortando. – Responde sem paciência, mas logo um sorriso irônico se forma em seus lábios. – Ao menos que prefira tirar a blusa, por mim tudo bem.

      – Não. – Resmungo vermelha. – Tudo bem.

     Ele volta a cortar a manga e vejo minha pele esfolada, mas sem grandes cortes, já a mancha está tão vermelha e quente que fico com medo de que possa ter queimado gravemente minha pele. Então percebo o olhar de Duncan sobre minha mancha de nascença com uma atenção excessiva enquanto passa pomada.

      – Nunca vi uma mancha como essa. – Diz distraído, mas percebo seu cenho franzir levemente. – Só você tem?

      – Sim. – Respondo e desvio os olhos rapidamente. – Nasci com ela.

     – Humm... – Duncan fica em silêncio por alguns segundos, fazendo um bolo em minha garganta aparecer. – É por isso que deram esse nome pra você?

     O olho surpresa pensando que iria perguntar o porquê da queimação na volta da mancha e não nela em si. Então me obrigo a engolir o bolo e responder.

      – Sim, foi minha avó quem escolheu. Disse que me tornava mais especial.

    – Pelo jeito vocês eram próximas. – Ressalta enquanto coloca gaze por cima do ferimento antes de começar a cortar o esparadrapo.

      – Mais do que possa imaginar. – Rebato e relembro o fato de que vovó tinha um interesse evidente sobre minha mancha de nascença, mas nunca dividiu comigo suas dúvidas até porque era nova demais para entender.

     Ficamos em silêncio até que terminasse de cuidar da minha perna e conseguisse fazer uma tipoia improvisada para deixar meu braço imóvel. Mas em todo o tempo em que estava cuidando de mim, não pude não sentir a vontade de compartilhar pela primeira vez com alguém o fato dessa minha mancha me intrigar tanto e que, de certa forma, faz previsões quando algo ruim está prestes a acontecer.

     – Muito obrigada. – Digo quando ele terminou e o vejo dar um sorriso satisfeito.

     – Não há de quê. – Responde, mas logo percebo seus olhos vagarem para meu corpo. – Você precisa trocar essa roupa.

     Olho para minhas roupas percebendo que não havia como salvá-las, mas ao mesmo tempo não me sinto confortável de ir ao banho com ele em casa.

     – Vou só trocar de roupa. – Finalmente respondo. – Recomendo que faça o mesmo antes de conversamos.

     Ele concorda com um aceno de cabeça e me ajuda a levantar enquanto alcança minha mochila, ando até o quarto e separo uma camisa branca de mangas compridas, uma calça de moletom cinza e um par de chinelos. Troco de roupa com dificuldade e respiro fundo. Ando silenciosamente até a sala, quando entro percebo que Duncan colocou uma calça jeans azul escura e está com as costas nuas, quase vestindo uma camisa, mas tudo o que consigo ver é sua tatuagem. Sinto meu coração palpitar e tranco a respiração quando vejo o dragão em suas costas e logo percebo que ele não está da mesma forma que vi na beira da praia há umas semanas... É como se ele realmente se movesse o tempo todo.

 

Antes mesmo de sentir sua energia entrar na sala já estava ouvindo os pensamentos rodopiando como redemoinhos, cheios de perguntas e questionamentos.

     Dragão. Essa palavra retumba pela sua cabeça como se tivesse tentando se lembrar de algo fundamental. Não pode ser, mas e se for? Sinto suas dúvidas como se fossem minhas, mas quanto mais tento conectar meus pensamentos com os seus, mais os sinto fugir. Não se preocupe ele virá até você. Essa voz era de Valentina, mas está nas lembranças de Luna e quando vejo já havia perdido completamente seus pensamentos.

      Ela conseguiu se lembrar, penso enquanto sinto cada músculo de meu corpo ficar tenso. Agora vem a parte mais difícil, da qual não posso errar.

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Prólogo - Despertar da Magia

Acordo assustada, suando frio e tremendo. Levanto-me e corro para a janela do quarto, o chão de madeira range debaixo de meus passos pesados...

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